RIO ENCONTROS – 30 ANOS DE CL NO RIO
Inicialmente, gostaria de parabenizar os organizadores do Rio Encontros em comemoração aos 30 anos do movimento Comunhão e Libertação no Rio de Janeiro. É com alegria muito grande que participo deste evento que celebra a chegada de dom Filippo e de padre Giuliano em nossa cidade e que, para mim, teve um significado muito especial de retorno à vida da Igreja Católica já que havia me afastado dela a partir do momento em que ingressei no curso de Ciências Sociais em 1967.
Um agradecimento especial é dirigido ao Carlinhos que pessoalmente me convidou para participar desta mesa para um diálogo sobre política junto com dom Filippo, amigo muito querido e que teve importante papel em momentos decisivos de minha vida desde que encontrei o movimento aqui no Rio de Janeiro. Muito me honra dialogar com dom Filippo que foi o responsável pela orientação de políticos católicos durante sua função como bispo auxiliar do Rio de Janeiro e como bispo de Petrópolis.
Na comemoração dos 15 anos do movimento CL no Rio de Janeiro, em meu testemunho, eu dizia que uma das dimensões do CL que para mim era apaixonante e que me era pessoalmente cara dizia respeito à importância atribuída pelo movimento ao fato educativo e cultural. Hoje, nesta celebração dos 30 anos do movimento no Rio de Janeiro eu quero acrescentar que a dimensão da política, conforme a proposta do movimento, igualmente me fascina e me é muito cara especialmente porque, nesta esfera, CL me educou para o senso crítico para que eu possa no cotidiano descobrir a minha dignidade como homem e a verdadeira face da Igreja, procurando identificar na dimensão política a expressão e a comunicação da autêntica experiência humana.
Minha apresentação será dividida em duas partes distintas mas complementares. Inicialmente, farei um breve comentário sobre os afrescos de Ambrogio Lorenzetti sobre o Bom Governo e o Mau Governo e os efeitos do Bom Governo sobre a cidade e o campo, ponto de partida do diálogo sobre a política. Estas observações não pretendem ser exaustivas, sendo apenas alguns destaques pontuais para sublinhar algumas noções relativas à dimensão política, objeto deste diálogo.
Em seguida, com base em textos de dom Giussani datados do final da década de 80, procurarei expor o pensamento do fundador de CL a respeito de algumas categorias centrais da política. A partir do pensamento de dom Giussani poderemos observar a originalidade de sua experiência no terreno político e como determinadas formas de pensar atualmente a política encontram nele uma abordagem diferente da mentalidade dominante que impera nos dias atuais.
Comecemos, portanto, com Lorenzetti. Antes de tudo, é preciso observar que foi uma preocupação dominante da Baixa Idade Média a educação de seus príncipes. Muitas vezes, os escritos políticos desta fase histórica tem a forma de uma espécie de exortação moral e toda uma literatura política foi escrita voltada para a educação ética do governante.
Como nos diz um autor especialista neste período: “A construção da imagem do rei sábio nos séculos XIII-XIV fez parte do topos real. Através de uma educação virtuosa, da reflexão ética interior, o rei deveria ser o espelho de uma vida virtuosa, no qual seus súditos pudessem contemplar um modelo de perfeição a conduzi-los ao reino celeste”.
Lorenzetti, através de seu afresco, estava inserido dentro deste contexto histórico cujo ethos dominante caracterizou-se pela oposição entre o bom e o mau governo. De um modo geral, este afresco representa, tanto para os governantes quantos para os demais frequentadores do Palácio Comunal de Siena, as virtudes necessárias ao bom governo e os vícios a serem evitados.
Num afresco temos a alegoria do Bom Governo. Nos outros dois, o Mau Governo – tirano – e os efeitos sociais do bom governo no campo e na cidade.
O Bom Governo é representado por um rei barbudo, sábio, virtuoso simbolizando tanto a cidade de Siena quanto o bem estar público. Seis virtudes estão representadas no Bom Governo. São elas a Magnanimidade, a Temperança, a Justiça, a Paz, a Fortaleza e a Prudência. A justiça também é representada neste afresco e sua importância para o Bom Governo pode ser avaliada por um poema que explica o sentido da obra para o visitante do Palácio Comunal: “Onde reina esta santa virtude (a justiça) a pluralidade das almas é induzida à unidade, as que, assim reunidas, dão-se ao bem comum por senhor”. O bem público deve anteceder ao bem privado, em outras palavras.
O Mau Governo é representado por uma figura demoníaca, maléfica, sendo a própria encarnação do Diabo. Os vícios são parte intrínseca do tirano e são eles a Crueldade, a Traição, a Maldade, o Roubo, a Divisão e a Guerra. Além disso, são retratadas neste afresco a Avareza, a Soberba, a Vanglória, que simbolizam a confusão entre o público e o privado. No dizer de um autor: “O tirano ignora a justiça, usando-a em seu próprio proveito – a aplicação da Justiça é o que distingue o bom do mau governo”.
No prolongamento do afresco sobre o Bom Governo, Lorenzetti descreve os efeitos do governo justo sobre a cidade. Estes efeitos podem ser vistos através do trabalho, do lazer, das construções, da sala de aula com o professor, da sapataria. Além disso, donzelas dançando representam uma ocasião de festa. Um autor italiano assim resume os efeitos do bom governo sobre a cidade: ”Trabalho e jogos, riqueza e beleza, harmonia e bem estar da comunidade: é o ideal do bom governo urbano, pelo príncipe”.
Os efeitos do Bom Governo sobre o campo são também representados por Lorenzetti. A alegoria da segurança domina a cena. Trabalhadores camponeses dignos executam suas funções ordeiramente com domínio total sobre a natureza. Todo o povo trabalha em paz em seus afazeres cotidianos.
A partir deste rápido e sucinto olhar sobre a obra de Lorenzetti e ao refletir sobre a questão da política para este encontro, decidi voltar a ler os textos de dom Giussani sobre esta dimensão documentada em seu livro o Eu, o poder, as obras. Neste texto, especialmente na parte sobre o poder, dom Giussani enuncia seu pensamento a respeito das coisas da política a partir dos ensinamentos da tradição do magistério da Igreja, consubstanciadas em sua Doutrina Social. Acredito que voltar a este livro é fundamental para entender o que nos ensina dom Giussani sobre a política e vocês poderão observar muitos pontos de contato com o afresco de Lorenzetti.
Em 1987, em Assago dom Giussani pronunciou uma palestra num encontro oficial da Democracia Cristã com o título Senso religioso, obras e política, palestra esta que provocou muitas polêmicas pelo modo particular de sua abordagem.
A primeira e fundamental lição de dom Giussani sobre a política é afirmar clara e taxativamente que o homem deve ser o centro da atividade política o que, segundo me parece, contradiz o entendimento dos políticos profissionais que, na maioria das vezes, estão apenas preocupados em defender seus interesses pessoais e corporativos. Diz-nos dom Giussani: “A política, enquanto forma completa de cultura, só pode ter como preocupação fundamental o homem”.
Na atividade política, o poder é uma dimensão central. Convém aqui deixar claro que, diferentemente da concepção do senso comum, o poder não é necessariamente uma atividade suja e que deve ser evitado. Dom Giussani nos diz que diante dos valores que nos são apresentados, o homem tem de lidar com o poder e recorre a uma definição de Romano Guardini segundo o qual o poder é definido como “o delineamento do objetivo comum e organização das coisas para sua obtenção”. Fica claro, portanto, que o exercício do poder não é uma atividade que nós, católicos, devemos menosprezar e deixar de lado pois nossas demandas legítimas sobre a liberdade religiosa, a liberdade de educar nossos filhos segundo nossa fé, o direito à vida desde a fecundação, etc. precisam ser colocadas publicamente e, para enfrentar estas e outras questões importantes, temos de lidar com o poder de maneira organizada.
Podemos nos perguntar então sobre, afinal, o que determina o poder? Aqui, dom Giussani, nos coloca diante de um dilema e nos afirma: “Ora, o poder ou é determinado pela vontade de servir à criatura de Deus no seu desenvolvimento dinâmico, isto é, servir ao homem, à cultura e à práxis que dela deriva ou, então, tende a reduzir a realidade humana ao seu próprio objetivo.” Fica explícita a crítica de dom Giussani à abordagem reducionista da concepção de poder que entende a realidade como fruto de um projeto humano que graças, única e exclusivamente, ao esforço do homem pode se realizar através de ideologias que propõem a transformação do mundo e a salvação do homem sem levar em conta seu protagonismo. Nesta abordagem reducionista do poder, estamos no reino do ‘divo’, o homem capaz que conta com suas próprias forças. É na própria força que se deve esperar, é na própria energia que se aposta, conforme nos diz dom Giussani em A consciência religiosa do homem moderno.
Outro ensinamento importante que nos legou dom Giussani a partir de Assago diz respeito às relações entre a sociedade e o Estado, questão que atualmente comporta diferentes abordagens. É comum nos depararmos hoje com inúmeras tentativas do Estado em se imiscuir em atividades não só econômicas como também em atividades privadas como na área da educação dos filhos, do planejamento familiar, da escolha da moradia, entre outras.
É conhecida a insistência de dom Giussani na importância da primazia da sociedade sobre o Estado pois somente através da livre associação das pessoas em organizações da chamada sociedade civil é possível desenvolver a dignidade do homem.
Ele é taxativo neste sentido e nos diz: “É no primado da sociedade diante do Estado que se preserva a cultura da responsabilidade. Primado da sociedade, portanto: como tecido criado por relações dinâmicas entre movimentos que, criando obras e agregações, constituem comunidades intermediárias, e assim exprimem a liberdade das pessoas potencializadas pela forma associativa”.
Neste sentido, obras sociais de cunho assistencial e educativo, empreendimentos empresariais que se organizam para atender às necessidades humanas, deveriam contar com o apoio do Estado apenas em caráter subsidiário, facilitando a livre associação de pessoas e não cooptando tais organizações pelo aparelho estatal como parece acontecer hoje em nossa realidade. Sob meu ponto de vista, boa parte das chamadas Organizações Não Governamentais no Brasil foram ilegitimamente cooptadas pelo Estado através do fornecimento de verbas polpudas ou através de prestação de serviços muitas vezes de maneira fraudulenta, atuando desta forma como linha auxiliar do aparelho estatal e não como defesa de interesses da sociedade civil.
Nesta concepção de política o que conta, em última análise, é a manutenção de grupos sociais no poder que buscam se perpetuar para poderem realizar seus objetivos partidários nem sempre em linha com as chamadas comunidades intermediárias, como nos ensina dom Giussani. Trata-se de um Estado prepotente.
Assim dom Giussani finaliza sua palestra em Assago: “Deste modo, a política deve optar se favorece a sociedade exclusivamente como instrumento, manipulação de um Estado ou poder, ou então, se favorece um Estado que seja verdadeiramente leigo, isto é, a serviço da vida social, conforme o conceito tomista de bem comum…”.
Outra questão importante e que merece ser debatida tem a ver com a democracia, categoria tão usada (e vulgarizada) ultimamente mas que poucos tem noção de seu verdadeiro significado. Em um texto cujo título é Afirmar o outro por ele existir, dom Giussani enfrenta esta questão.
Ele afirma, de início: “O ideal da democracia surge normalmente como exigência de relações exatas, justas, entre pessoas e grupos. Mais especificamente, o ponto de partida de uma verdadeira democracia é a exigência natural, humana, de que a convivência ajude a afirmar a pessoa, de que as relações sociais não atrapalhem o crescimento da personalidade”.
Algumas observações surgem a partir deste texto. Primeiramente é visível a preocupação de dom Giussani com as relações entre pessoas e grupos que devem ser justas não admitindo relações assimétricas, de desigualdade. Em segundo lugar, a democracia deve contribuir para o desenvolvimento pessoal, para o fortalecimento daquilo que podemos chamar de nosso eu. Uma democracia que simplesmente transforme a pessoa em massa, que dificulte o protagonismo de cada um de nós não contribui para uma convivência saudável, rica, plena de liberdade.
O respeito ao outro, a afirmação do outro com seus valores e sua liberdade são características que devem ser preservadas por uma democracia que se acredite autêntica: “Poder-se-ia chamar ‘diálogo’ este modo de relacionamento entre os homens que a democracia tende a instaurar”, diz-nos dom Giussani
Para ele, a democracia deve pautar suas atividades por uma intensa convivência entre pessoas e grupos, por um pluralismo que não seja relativista como querem alguns autores ditos ‘modernos’, uma convivência que afirme o homem ‘por ele existir’.
Ou, como afirma dom Giussani: “Para nossa mentalidade cristã, democracia é convivência, isto é, reconhecer que minha vida implica a existência do outro, e o instrumento dessa convivência é o diálogo. Mas o dialogar é propor ao outro aquilo que eu vivo, e dar atenção àquilo que o outro vive, por uma estima pela sua humanidade e por um amor ao outro que não implica em absoluto uma dúvida de mim, que não implica absolutamente o comprometimento daquilo que eu sou”.
E para finalizar, permito-me citar um autor muito caro a dom Giussani, T.S. Eliot que nos versos proféticos de A Rocha , escritos em 1934, nos aponta:
“Ermo e vazio. Ermo e vazio. E trevas sobre a face do abismo
A Igreja deserdou a humanidade ou foi por ela deserdada?
Quando a Igreja não for mais considerada, ou sequer contestada, e houverem os homens esquecido
Todos os deuses, exceto a Usura, a Luxúria e o Poder”.